sábado, 8 de agosto de 2009

revisão bibliografica AUTISMO


Autismo: breve revisão de diferentes abordagens


Cleonice Bosa 1 2

Psicologia: Reflexão e Crítica (ISSN 0102-7972) vol.13 n.1 Porto Alegre 2000.


Resumo: Esse artigo examina diferentes abordagens no estudo do autismo: psicanálise, teoria afetiva, teoria da mente, teorias neuropsicológicas e de processamento da informação. As principais contribuições e limitações dessas abordagens são identificadas. Reivindica-se a necessidade de integração dos diferentes domínios e de investigações que incluam tanto as deficiências quanto as competências sociais dos indivíduos com autismo. Isso auxiliaria no reconhecimento das diferenças individuais ao longo do continuum autista.

Palavras-chave: Autismo; revisão; diferentes abordagens.

Autismo é uma síndrome comportamental com etiologias diferentes, na qual o processo de desenvolvimento infantil encontra-se profundamente distorcido (Gillbert, 1990; Rutter, 1996). A primeira descrição dessa síndrome foi apresentada por Leo Kanner, em 1943, com base em onze casos de crianças que ele acompanhava e que possuíam algumas características em comum: incapacidade de se relacionarem com outras pessoas; severos distúrbios de linguagem (sendo esta pouco comunicativa) e uma preocupação obsessiva pelo que é imutável (sameness). Esse conjunto de características foi denominado por ele de autismo infantil precoce (Kanner, 1943).

O diagnóstico e subclassificações do autismo estiveram sob o amplo rótulo de ‘esquizofrenia infantil’ por muitas décadas. Entretanto, segundo Rutter (1985), já havia nos anos 70, um reconhecimento de que seria necessário distinguir-se entre as severas desordens mentais, surgidas na infância, e as psicoses cujo aparecimento se faz mais tarde. Considerando que uma séria anormalidade no processo de desenvolvimento per se está presente desde cedo na vida da criança (evidência dessa desordem deve ser aparente nos primeiros 36 meses de vida de acordo com o DSM-IV/APA (1994)), o termo ‘transtornos invasivos do desenvolvimento’ tem sido adotado, desde a década de 80.

Diferentes sistemas diagnósticos (DSM-IV/APA, 1994; CID-10/WHO, 1992) têm baseado seus critérios em problemas apresentados em três domínios (tríade de prejuízos), tais quais observados por Kanner (1943), que são: a) prejuízo qualitativo na interação social; b) prejuízo qualitativo na comunicação verbal e não-verbal, e no brinquedo imaginativo; e, c) comportamento e interesses restritivos e repetitivos.

Taxas de prevalência obtidas a partir de estudos epidemiológicos variam de aproximadamente 2-3 até 16 em cada 10.000 crianças (Wing, 1996). A prevalência de crianças com autismo típico, no Reino Unido, por exemplo, é de 4-5 em cada 10.000 crianças (Wing & Gould, 1979). Contudo, esta taxa aumenta para 15-20 em cada 10.000 se crianças do tipo autistic-like forem incluídas, isto é, aquelas crianças que mostram características autistas no que se refere à ‘tríade’ de comprometimentos (social, comunicação, e atividades restritas/repetitivas). No Brasil, apesar de não haver dados estatísticos, calcula-se que existam, aproximadamente, 600 mil pessoas afetadas pela síndrome do autismo (Associação Brasileira de Autismo, 1997), se considerarmos somente a forma típica da síndrome.

A prevalência é quatro vezes maior em meninos do que em meninas (Rutter, 1985; Wing, 1981) e há alguma evidência de que as meninas tendem a ser mais severamente afetadas (Wing, 1996). Entretanto, isso pode ser devido à tendência de meninas com autismo apresentarem QI mais baixo do que os meninos, pelo menos nos estudos de Lord e sua equipe (Lord & Schopler, 1985).

O estudo na área do autismo infantil, desde as primeiras considerações feitas por Kanner (1943) até as mais recentes reformulações em termos de classificação e compreensão dessa síndrome (Rutter, 1996), tem sido permeado por controvérsias quanto a sua etiologia. Historicamente, reivindicações a respeito da natureza do deficit considerado ‘primário’ (inato x ambiental) têm constituído os principais postulados das teorias psicológicas sobre o autismo. Algumas destas teorias serão apresentadas a seguir, iniciando-se com uma breve revisão sobre as abordagens psicanalíticas aplicadas ao estudo do autismo, seguidas pelas teorias afetivas, sócio-cognitivas, neuropsicológicas e de processamento da informação.

Teorias Psicanalíticas

Existem diferentes postulados teóricos dentro da abordagem psicanalítica que se propõem a explicar o autismo. Maratos (1996), ao analisar as contribuições dessa escola de pensamento, concluiu que a preocupação da maioria dos psicanalistas tem sido mais a de descrever o funcionamento mental, os estados afetivos e o modo como essas crianças se relacionam com as pessoas do que com questões etiológicas.

Especulações a respeito da gênese do autismo surgiram com a tese inicial de Kanner (1943) de que crianças autistas sofriam de uma inabilidade inata de se relacionarem emocionalmente com outras pessoas:

"Nós devemos, então, assumir que estas crianças tenham vindo ao mundo com uma inabilidade inata de formar o usual, biologicamente determinado, contato afetivo com outras pessoas, da mesma forma que outras crianças vêm ao mundo com deficiências físicas ou intelectuais inatas." (p. 250)

Apesar de seu artigo ter incluído observações a respeito da falta de afetividade nas famílias das onze crianças que ele acompanhou em sua clínica, sua posição foi a de que dificilmente se poderia atribuir todo o quadro apresentado pela criança ao tipo de relacionamento com os seus pais, dado o intenso isolamento social da criança, desde o começo de sua vida. Entretanto, essas mesmas observações levaram à hipótese de que haveria uma ligação entre autismo e depressão materna (Kanner & Eisenberg, 1956). O mecanismo que embasa essa noção é o de que a depressão interfere na capacidade materna para cuidar e envolver-se emocionalmente com o seu bebê. Dessa forma, nas duas décadas que se seguiram à publicação seminal de Kanner, o autismo foi atribuído a causas psicogênicas, formuladas a partir de observações clínicas e da abordagem psicanalítica.

Melanie Klein foi a pioneira no reconhecimento e tratamento da psicose em crianças. Apesar dessa autora não distinguir os quadros autistas da esquizofrenia infantil, reconheceu a presença, nas crianças com autismo, de características qualitativamente diferentes de outras crianças consideradas psicóticas (Klein, 1965). Para a autora, o autismo era explicado em termos de inibição do desenvolvimento, cuja angústia decorria do intenso conflito entre instinto de vida e de morte. Supunha, tal como Kanner (1943), que tal inibição seria de origem constitucional a qual, em combinação com as defesas primitivas e excessivas do ego, resultaria no quadro autista. O bloqueio da relação com a realidade e do desenvolvimento da fantasia, que culminaria com um deficit na capacidade de simbolizar, seria então, central à síndrome.

Margaret Mahler, por sua vez, identificou diferentes fases no processo do desenvolvimento psicológico do bebê (Mahler, 1968, 1975), sendo a primeira, a do narcisismo primário na qual uma fase ‘autística normal’ marcaria as duas primeiras semanas de vida do bebê. Essa fase se caracterizaria por um estado de desorientação alucinatória primitiva (narcisismo primário absoluto), ocorrendo uma falta de consciência do agente materno. Na fase seguinte do narcisimo primário (onipotência alucinatória condicional) haveria uma consciência de que a satisfação das necessidades viria de algum lugar externo ao eu. A partir do segundo mês de vida, essa consciência, inicialmente ‘turva’ torna-se difusa, marcando o início da fase de simbiose normal – o bebê funciona como se ele e sua mãe fossem uma unidade dual. É dentro desse quadro de total dependência psicológica e sociobiológica da mãe que o ego rudimentar do bebê pequeno começa um processo de diferenciação. Por volta dos seis meses de idade, teria início a fase de separação-individuação que levará à organização do indivíduo.

Mahler (1968) desenvolveu suas idéias sobre os autismos infantis a partir de sua teoria evolutiva, explicando o autismo como sendo um subgrupo das psicoses infantis e uma regressão ou fixação a uma fase inicial do desenvolvimento de não-diferenciação perceptiva, na qual os sintomas que mais se destacam são as dificuldades em integrar sensações vindas do mundo externo e interno, e em perceber a mãe na qualidade de representante do mundo exterior. Posição semelhante foi desenvolvida por Tustin (1981), que também reconhecia uma fase autista normal no desenvolvimento infantil, sendo a diferença entre esta e o autismo patológico, uma questão de grau. Para ela, o autismo seria uma reação traumática à experiência de separação materna, que envolveria o predomínio de sensações desorganizadas, levando a um colapso depressivo.

Depreende-se dos conceitos acima, a noção de que a ‘retirada’ do bebê para um mundo próprio seria uma conseqüência da falha na modulação das pulsões instintivas, na organização das suas reações formativas e defesas, o que impediria o desenvolvimento de uma verdadeira relação objetal. O autismo foi ainda compreendido como sendo, por exemplo: a) uma reação autônoma da criança à ‘rejeição materna’ cuja raiva leva a interpretação do mundo à imagem da sua cólera e à reação de desesperança (Bettelheim, 1967); b) uma cisão do ego precoce, ocasionando uma desorganização dos processos adaptativos e integrativos como falha na superação da posição paranóide (Klein, 1965); c) um sintoma dos pais em que a mãe é vista como um vazio de manifestações espontâneas de sentimentos (Kaufman, Frank, Friend, Heims & Weiss, 1962); d) uma forma de ausência completa de fronteira psíquica decorrente de uma falta de diferenciação entre o animado e o inanimado (Mazet & Lebovici, 1991); e, e) conseqüência de severas dificuldades em formar representações ícones entre as primeiras representações mentais e áreas somáticas (Aulagnier, 1981, citada por Maratos, 1996).

Concebe-se a criança autista como vivendo em um estado mental caracterizado por insuficiente diferenciação entre estímulos vindos de dentro ou de fora do corpo e incapacidade para construir representações emocionais. Dessa forma, todo estímulo (social e não-social) seria experienciado como sendo fragmentado, impedindo a possibilidade de formação de uma experiência contínua, seja quando só ou na presença de outros. O conceito de ‘desmantelamento do ego’ de Meltzer (Meltzer, Bremer, Hoxter, Weddell & Wittenberg, 1975) ilustra este processo no qual a atenção da criança à função total de um objeto é suspensa, sendo concentrada em partes do objeto que são mais atrativas para ela em um dado momento. Esse desmantelo, no qual o processo de senso de integridade e continuidade é interrompido, leva ao predomínio de emoções primitivas e muitas vezes dolorosas. O autismo seria então uma defesa contra o desmantelamento do ego. Estes autores chamam a atenção para a necessidade de se mobilizar a atenção nestas crianças de modo a possibilitar uma relação coerente com os objetos e com o seu próprio self.

A questão do problema de bombardeamento de sensações no autismo foi abordada por Tustin (1981, 1990), que propôs a noção de ‘colapso depressivo crônico’ ao compreender os estados autistas como uma reação a uma incapacidade de filtrar as experiências sensoriais, na qual a função do ‘tampão’ ou ‘concha’ autística seria mais a de proteção do que compensatória (i.e. de reação contra a ansiedade), diferindo, dessa forma, de Mahler e Meltzer.

A controvérsia sobre a existência de uma distorção no desenvolvimento do bebê devido a fatores intrínsecos orgânicos (constitucionais ou adquiridos), ou ainda, ambientais, tem sido tratada de forma linear e reducionista. Entretanto, a noção de que o autismo tem causação múltipla não é nova (Meltzer, 1975), sendo essa tendência uma tônica nos anos 90. Alvarez (1992) chama a atenção para a necessidade de um modelo de feedback interacional que contemple tanto a natureza quanto os cuidados dispensados ao bebê e faz a ressalva de que, a despeito de alguma disfunção neurológica inicial, sempre haverá uma forma particular de deficit psicológico resultante da interação com o ambiente. Complementando essa idéia, Maratos (1996) afirma que ainda que causas orgânicas sejam identificadas, um dos aspectos básicos da abordagem terapêutica não será fundamentalmente alterada, qual seja, a análise dos processos mentais. Por outro lado, Alvarez (1992) e Tustin (1994) reconhecem que a etiologia psicogênica possa ser aplicável a apenas uma parcela das crianças com autismo e reafirmam a necessidade de se levar em conta a associação de fatores neuroquímicos com o funcionamento emocional.

Um último tópico que merece ser abordado é a noção de patogenia parental. Alvarez (1992) e Maratos (1996) mostraram-se bastante críticas em relação à noção do autismo como sendo um transtorno decorrente de problemas na qualidade da maternagem. Ressaltaram que Bettelheim (1967), o principal proponente dessa tese, não recebeu apoio de grande parte dos psicanalistas ao conceber o autismo como uma defesa contra uma mãe deprimida e fria. Para esse autor, os pais de crianças autistas não forneciam as condições emocionais necessárias para que a criança saísse do seu isolamento, embora salientasse que esse não seria o único fator implicado no autismo. Tais idéias constituíam a base das recomendações de comunidades terapêuticas nas quais as crianças eram afastadas do convívio familiar.

Um dos grandes problemas de tais especulações é a confusão entre a reação dos pais ao perfil único de comportamento do filho (a ) e a causalidade parental da síndrome (Rutter, 1994; Trevarthen, 1996). De fato, essa observação não é inédita, pois já na década de 60, Escalona (1968, citado por Ajuriaguerra, 1983) chamava a atenção para esta controvérsia – se autismo seria decorrente de um relacionamento materno inadequado ou de deficiências inatas – concluindo que tais discussões eram estéreis, uma vez que o autismo seria o resultado de uma falta de experiências vitais na infância, cuja origem pode ter suas raízes em fatores intrínsecos, extrínsecos, ou em ambos. De qualquer forma, estudos atuais que tanto investigaram características de personalidade de famílias de crianças autistas (Bolton e cols., 1994) quanto à associação entre deficits sociais e privação emocional (Rutter & Lord, 1994) também não corroboraram a tese de Bettelheim. Apesar de haver evidência de maior presença de transtornos de humor e de obsessivo-compulsivos em familiares de indivíduos autistas (comparados a familiares de indivíduos que apresentam atrasos de desenvolvimento mas sem autismo - Bolton e cols., 1994), tais achados não são suficientes para que relações causais entre esses tipos de transtornos, a qualidade de relacionamento pais-criança e autismo sejam estabelecidas. Ao invés disso, os autores sugeriram que transtornos obsessivo-compulsivos, por exemplo, podem estar associados a uma suscetibilidade para o autismo.

Teorias Afetivas

A tese de Kanner de que crianças com autismo sofreriam de uma inabilidade inata de se relacionarem emocionalmente com outras pessoas foi retomada e estendida por Hobson (1993a, 1993b). A teoria afetiva sugere que o autismo se origina de uma disfunção primária do sistema afetivo, qual seja, uma inabilidade inata básica para interagir emocionalmente com os outros, o que levaria a uma falha no reconhecimento de estados mentais e a um prejuízo na habilidade para abstrair e simbolizar. Os deficits no reconhecimento da emoção e na habilidade de utilizar a linguagem de acordo com o contexto social, seriam então, conseqüências da disfunção afetiva básica, a qual impediria a criança de viver a experiência social intersubjetiva. Tal experiência está associada à capacidade (inata) de perceber e responder à linguagem corporal (por exemplo, expressão facial, vocal e gestual) e de inferir emoções a partir dessa linguagem. Em outras palavras, os bebês viriam ao mundo naturalmente equipados com a capacidade para extrair significado afetivo da fisionomia e das atitudes das pessoas, o que as possibilitaria desenvolver o conceito de ‘pessoas com mentes’. Esse processo de desenvolvimento foi denominado por Trevarthen (1979) de ‘intersubjetividade primária’, isto é, a capacidade inata do ser humano para estabelecer relações afetivas recíprocas, habilidade essa que o capacita a distinguir pessoas de ‘coisas’ e de compreender os estados mentais do self e dos outros.

De acordo com Hobson, a experiência de intersubjetividade permite a diferenciação progressiva do self através da transformação de formas primitivas de experiências do self em ‘consciência’ do mesmo. Há uma compreensão crescente não somente do próprio self como fonte de atitudes e sentimentos em relação ao mundo como também da natureza dos ‘selves’ dos outros tão similar e ao mesmo tempo tão distinto do dela. O autor explica o processo de distinção entre pensamento e realidade concreta a partir da percepção da criança de que diferentes pessoas conferem significados diferentes aos mesmos eventos do ambiente (Hobson, 1993a):

"Eu acredito que esta triangulação envolvendo o self, o outro e um objeto de atitude é vitalmente importante como contexto no qual a criança passa a distinguir ‘pensamento’ de ‘coisa’ (ou inicialmente, ‘atitude’ de ‘coisas’), e apreende como é possível conferir novos significados à realidade aparente, como no brinquedo simbólico-criativo." (p.215)

Hobson e equipe, numa série de experimentos empregando grupos de controle, testaram a hipótese de que indivíduos com autismo apresentam deficits no processamento da informação afetiva. Em um desses estudos (Hobson, 1986), crianças com e sem autismo foram testadas na sua habilidade em combinar desenhos e fotografias de expressões faciais com as imagens correspondentes em fitas de videotapes. As crianças com autismo demonstraram grandes dificuldades nessa tarefa, sugerindo um deficit na capacidade de reconhecimento de diferentes emoções. Em um outro estudo, os achados foram que as crianças autistas tenderam a classificar pilhas de fotografias a partir de características não-faciais (por exemplo, pelas roupas), enquanto crianças sem autismo o fizeram com base nas expressões afetivas (Weeks & Hobson, 1987), e também mostraram comprometimento na capacidade de combinar expressões faciais com gestos e postura congruentes (Hobson, 1986).

Uma outra teoria afetiva (Mundy & Sigman, 1989) enfatiza, tal qual Kanner (1943) e Hobson (1986) o fizeram, as possíveis bases biológicas da síndrome do autismo: "Num sentido muito real, o modelo que aqui apresentamos brevemente está de acordo com a hipótese original de Kanner" (p.16). Entretanto, de forma diversa desse último, não postula uma primazia de um sistema (afetivo) sobre o outro (cognitivo) e sim, chama a atenção para o papel de ambos no desenvolvimento social infantil. Para os autores, o comportamento de ‘atenção compartilhada’ (isto é, a capacidade de dividir a experiência com objetos/eventos com o parceiro) ilustra o processo integrado de fatores afetivos e cognitivos, uma posição já defendida por Hermelin e O’Connor (1970) ao nomearam tal processo de sistema lógico-afetivo.

Para Mundy e Sigman (1989), o desenvolvimento da cognição social ocorre a partir de ‘esquemas de ação social’, os quais emergem no contexto de interações face-a-face. Esses esquemas consistem em relacionar a representação do afeto experienciado pelo próprio self com o de outras pessoas. A experiência interna de outros e a concomitante expressão afetiva apresentada por eles seriam contrastados com a própria experiência da criança. Esse processo, segundo os autores, é rudimentar durante o primeiro semestre de vida do bebê, envolvendo somente representações de primeira ordem. Semelhante ao que Bruner (1983) já dissera a respeito da importância dos primeiros ‘jogos sociais’ entre o cuidador e o bebê para o desenvolvimento sócio-emocional da criança, esses autores salientam que as trocas afetivas repetidas no contexto de interação, em relação a um terceiro referente (objetos ou eventos) funcionam como a base para a comunicação não-verbal triádica – uma habilidade que emerge no segundo semestre de vida e contribui para a expansão das habilidades sócio-cognitivas do bebê. Embora essa teoria se assemelhe à de Hobson, a diferença básica seria uma ênfase maior no processo de comparação da experiência do próprio afeto com o do outro e não a percepção do afeto per se.

Baseados em investigações experimentais do comportamento de atenção compartilhada e de expressão da emoção, Mundy, Sigman e Kasari (1993) sugeriram que, desde muito cedo na sua vida, as crianças com autismo demonstram respostas afetivas atípicas diante de estimulação social, mais especificamente, distúrbios na auto-regulação de estímulos (Dawson & Levy, 1989) – uma posição anteriormente discutida por C. Hutt e colaboradores (Hutt & Hutt, 1968) e mais tarde expandida por Ornitz e Ritvo (1976) – e pela ruptura do desenvolvimento cognitivo de habilidades representacionais.

Tais teorias apresentam uma característica comum: a atribuição dos deficits sociais em autismo a dificuldades em modular tanto a informação sensorial quanto a experiência perceptiva. Dessa forma, o ‘retraimento’ autista tem sido explicado em termos de um estado de excitação crônico (Hutt & Hutt, 1968) ou flutuações nesses estados (Ornitz & Ritvo, 1976) que conduzem à evitação do olhar, reações negativas e retraimento da interação social, como mecanismos para controlar o excesso de estimulação.

Teoria da Mente

Paralelamente à noção de deficit inato na capacidade de entrar em sintonia afetiva com os outros no autismo, proposta pelas teorias afetivas, surgiram as explicações de danos na capacidade de meta-representar, ou mais especificamente, na habilidade de desenvolver uma teoria da mente, como fator explicativo da síndrome do autismo.

Teoria da mente significa a capacidade para atribuir estados mentais a outras pessoas e predizer o comportamento das mesmas em função destas atribuições (Premack & Woodruff, 1978). O termo ‘teoria’ foi empregado por esses autores porque esse processo envolve um sistema de inferências sobre estados que não são diretamente observáveis e que podem ser usados para predizer o comportamento de outros. Para alguns teóricos do desenvolvimento (por exemplo, Wellman, 1990; Harris, 1994) essa capacidade constituir-se-ia no desenvolvimento de um sistema de inferências incorporado de um conjunto de princípios relacionado a um tipo de senso comum acerca de processos explicativos do comportamento humano, ou seja, uma psicologia popular do comportamento (Horgan & Woodward, 1990). O impulso inicial para essa habilidade seria inato, porém o processo em si seria aprendido, através da interação com os cuidadores e com outras pessoas, durante o qual a criança vai incorporando informações da psicologia popular disponível na sua cultura.

Tem sido sugerido por alguns teóricos (Harris, 1994; Wellman, 1994) que uma teoria da mente operante se refletiria na capacidade da criança em atribuir a si própria ou a outrem, estados mentais como desejos, crenças e intenções - habilidade já presente ao redor dos três anos de idade. Nessa época, a criança estaria apta a distinguir estados mentais de físicos, bem como aparência (e ‘faz-de-conta’) de realidade. Em princípio a criança faria comentários a respeito dos seus próprios estados mentais para depois comentar a respeito do de outras pessoas e, dessa forma, predizer o comportamento das mesmas. Então, pode se dizer que o conceito subjacente ao desenvolvimento da teoria da mente é o da representação – expressão de um objeto ou evento através de categorias alheias a esses mesmos objetos/eventos (Perner, 1991).

A capacidade de representar passa por diferentes estágios ao longo do desenvolvimento. Durante o primeiro ano de vida ocorreria o estabelecimento de representações de nível primário, que se caracteriza pela apreensão do mundo circundante de forma sensorial, isto é, haveria a percepção apenas do objeto ou referente presente (Perner, 1991). Esse período corresponde ao estágio sensório-motor de Piaget (1966) e ao de representação primária-perceptual de Leslie (1987). Para este último, nessa etapa existe uma relação direta e transparente com o mundo, na qual representar constitui-se numa descrição literal da situação resultante da percepção (modelo presente). No segundo ano de vida, a criança evolui para um estágio (representação secundária para Perner, 1991) no qual passa a diferenciar o real do faz-de-conta, não necessitando mais da presença do objeto para representá-lo. Esse estágio corresponderia ao início da capacidade simbólica para Piaget (1966) e da meta-representação para Leslie (1987) a qual se tornaria ‘opaca’, isto é, seria destacada da realidade e transformada, através da manipulação da própria percepção. Em outras palavras, a representação de uma percepção não seria mais uma representação do mundo de uma forma direta (transparente), mas representações das representações (daí meta-representação). Essa suspensão das relações de referência com o mundo é denominada por Leslie como decouple (Leslie, 1987).

Ao dividir as construções de situações imaginárias com os outros, isto é, ao compreender o ‘faz-de-conta’ nos outros, estabelece-se uma forma elementar de compreender o estado mental dos outros (suas crenças, desejos e intenções) – os rudimentos de uma teoria da mente. Nesse ponto da discussão é imperativo que se faça uma distinção entre o conceito de meta-representação de Leslie e Perner. Para este último, a meta-representação implica um processo mais avançado que a representação da representação – necessitaria a compreensão do próprio ato representacional (Perner, 1991). O desenvolvimento de uma teoria da mente envolveria, então, não apenas uma representação interna a respeito das coisas mas também a capacidade de refletir sobre essas representações (Dennet, 1978).

A compreensão da criança a respeito das crenças dos outros foi primeiro investigada, experimentalmente, por Wimmer e Perner (1983) utilizando-se de um teste baseado numa estória de bonecos na qual um personagem mantém uma crença falsa (diferente) daquela da criança. Crianças que passavam nesse teste demonstravam capacidade para predizer o comportamento do personagem baseado na crença (falsa) do mesmo.

Baron-Cohen e equipe (Baron-Cohen, Leslie & Frith, 1985) adaptaram esse experimento, criando o teste da Sally-Ann para investigar o possível comprometimento de crianças com autismo na habilidade de usar o contexto social para compreender o que outras pessoas pensam e acreditam. Para os autores, um dos aspectos fundamentais da teoria da mente é a compreensão do papel da crença na determinação de uma ação, ou seja, aquilo que a pessoa acredita pode ser mais relevante no desencadeamento de um dado comportamento do que quaisquer circunstâncias reais. Dessa forma, a consideração de falsas crenças seria tão importante na determinação de um comportamento quanto as reais.

Nessa tarefa, uma boneca (Sally) coloca o seu brinquedo numa caixa e sai da sala. Enquanto isso, outra boneca (Ann) tira o brinquedo da caixa em que Sally o havia colocado e deposita-o em outra caixa. Pergunta-se à criança em qual das caixas Sally provavelmente vai procurar o brinquedo quando retornar à sala. As crianças com autismo, ao contrário das crianças com desenvolvimento normal e com deficiência mental, mostraram dificuldades em perceber que Sally não tinha nenhuma informação a respeito da mudança de caixa, e tenderam a responder que Sally procuraria o brinquedo na caixa em que Ann o havia colocado. Em outras palavras, essas crianças demonstraram dificuldades em compreender o que Sally pensava e em predizer o seu comportamento com base no seu pensamento. Tais resultados foram replicados, subseqüentemente, (Prior, Dahlstrom, & Squires, 1990; Ozonoff, Pennington & Rogers, 1991), exceto para as crianças com níveis mais altos de funcionamento global, e para aquelas com síndrome de Asperger, levando à conclusão de que crianças com autismo apresentam um atraso ou desvio no desenvolvimento da capacidade de desenvolver uma teoria da mente (Baron-Cohen, 1991). Esse comprometimento acarretaria deficits no comportamento social como um todo e na linguagem. Os deficits de linguagem seriam uma conseqüência da incapacidade dessas crianças para se comunicarem com outras pessoas a respeito de estados mentais assim como os distúrbios no comportamento social refletiriam a dificuldade em dar um sentido ao que as pessoas pensam e ao modo como se comportam.

Baron-Cohen (1995), expandindo os modelos de Wellman e Leslie, propôs um outro modelo para explicar o desenvolvimento do sistema representacional, denominado de sistema de leitura da mente (mindreading). Adotando uma perspectiva evolucionista, sustenta que a função desse sistema seria estabelecer ligações entre as propriedades do mundo, através de quatro mecanismos básicos e interatuantes: detector de intencionalidade (ID); detector de direcionamento do olhar (EDD), mecanismo de atenção compartilhada (SAM) e mecanismo de teoria da mente (ToMM). Os dois primeiros permitem que a criança construa imagens sobre pessoas e aja segundo uma intenção, estabelecendo dessa forma, representações entre o agente da ação e o objeto referente desta ação (representação diádica), sem contudo haver a compreensão de que ambos estão compartilhando uma mesma intenção (representação triádica). Esse último processo só se viabiliza através do recebimento de informações sobre o estado perceptual do agente (fornecidas pelo ID e EDD), as quais são então associadas ao seu próprio, através do mecanismo de atenção compartilhada.

O autor enfatiza o papel dos sentidos (visão, tato e audição) no mecanismo de atenção compartilhada - em especial a importância do olhar na interpretação de ações ambíguas no que se refere a estados mentais – o qual constitui-se nos fundamentos da teoria da mente (ToMM). Esse último dispositivo habilitaria a criança a interpretar o comportamento não somente em termos volitivos e perceptuais, mas também em termos epistêmicos (pensamento, conhecimento, crença, etc.) e sua relação com a ação, utilizando-se do referencial de opacidade ou decouple, descrito por Leslie (1987).

Essa teoria afirma que os mecanismos de ID e EDD estariam relativamente intactos nas crianças com autismo, enquanto os dispositivos SAM e ToMM estariam deficitários. Ou seja, aqueles comportamentos sociais que não envolvem meta-representação, como por exemplo, os afiliativos (abraçar, beijar) e instrumentais (busca de assistência) podem apresentar-se relativamente sem comprometimento, o que não ocorreria com aqueles envolvendo a atribuição de estados mentais a outrem.

Teorias Neuropsicológicas e de Processamento da Informação

Os estudos atuais a respeito do deficit cognitivo em autismo inspiraram-se no trabalho pioneiro de Hermelin e O’Connor (1970), que foram os primeiros a testarem, cientificamente, como as crianças autistas processavam a informação sensorial na resolução de testes de habilidades de memória e motoras. Eles concluíram que essas crianças mostravam deficits cognitivos específicos, tais como: problemas na percepção de ordem e significado, os quais não poderiam ser explicados por deficiência mental; dificuldades em usar input sensorial interno para fazer discriminações na ausência de feedback de respostas motoras; e tendência a armazenar a informação visual, utilizando um código visual, enquanto as crianças com desenvolvimento normal usavam códigos verbais e/ou auditivos. Particularmente surpreendentes foram as respostas dessas crianças aos estímulos auditivos - a intensa resposta fisiológica a sons contrastava com a passividade geralmente demonstrada por essas crianças em situações envolvendo tais estímulos.

Resultados semelhantes foram descritos em outros estudos e teorias a respeito dos deficits perceptivos em crianças com autismo os quais, apesar de adotarem diferentes terminologias e interpretações, descreveram o mesmo fenômeno: a resposta atípica de crianças autistas a estímulos sociais e não-sociais. Alguns exemplos desses conceitos são: hiperseletividade sensorial (Schreibman & Lovaas, 1974); otimização da estimulação sensorial (Hutt & Hutt, 1968; Zentall & Zentall, 1983); input sensorial e modulação da atenção (Ornitz & Ritvo, 1976).

Função Executiva

Acredita-se que a capacidade de planejamento e desenvolvimento de estratégias para atingir metas está ligada ao funcionamento dos lobos cerebrais frontais (Duncan, 1986). Essa habilidade envolve flexibilidade de comportamento, integração de detalhes isolados num todo coerente e o manejo de múltiplas fontes de informação, coordenados com o uso de conhecimento adquirido (Kelly, Borrill & Maddell, 1996). A hipótese de comprometimento da função executiva como deficit subjacente ao autismo surgiu em função da semelhança entre o comportamento de indivíduos com disfunção cortical pré-frontal e aqueles com autismo: inflexibilidade, perseveração, primazia do detalhe e dificuldade de inibição de respostas. Essas características foram subseqüentemente comprovadas pelos resultados do desempenho de indivíduos com autismo em testes destinados a medir funções executivas, como por exemplo, o Wisconsin Card Sorting Test (Heaton, 1981). Entretanto, uma das limitações desses testes é que eles não possibilitam a decomposição de funções cognitivas complexas em unidades elementares, o que permitiria a identificação de comprometimento em funções específicas e a investigação da associação entre essas funções e diferentes patologias (Ozonoff, Pennington & Rogers, 1991).

Hughes e Russel (1993) demonstraram que o grupo de crianças autistas, comparado aos grupos de controle, apresentaram um deficit maior na capacidade de planejamento para atingir uma meta. Eles utilizaram um experimento no qual a criança deveria aprender a obter bolinhas de gude de dentro de uma caixa, utilizando-se de uma entre duas diferentes estratégias. As crianças com autismo falharam em aprender a forma correta para obter esse fim, demonstrando maior insistência na estratégia incorreta. Do mesmo modo, McEvoy, Rogers e Pennington (1993) demonstraram que o grupo de crianças pré-escolares com autismo, comparado aos grupos de controle, apresentou a mesma tendência de perseveração na estratégia incorreta em uma tarefa de reversão espacial. Além disso, a performance nesta tarefa correlacionou-se com a habilidade no comportamento de atenção compartilhada, isto é, a capacidade de dirigir a atenção do parceiro para um objeto ou evento de interesse, espontaneamente. Isso sugere que tal habilidade pode estar relacionada à maturação dos lobos frontais, e que ambas as habilidades desenvolvem-se no mesmo período, isto é, no segundo semestre de vida do bebê.

Preocupados em fornecer uma descrição mais detalhada acerca das disfunções executivas implicadas no autismo, Ozonoff, Strayer, McMahon e Filloux (1994), utilizaram-se do paradigma do processamento da informação num estudo comparando grupos de crianças e adolescentes com autismo, com síndrome de La Tourette e com desenvolvimento típico. Os achados foram que o grupo de autistas obteve um desempenho comparável ao grupo de controle em tarefas que exigiam processamento global/local (atenção ao detalhe ou ao todo) e inibição de respostas a estímulos neutros. Em contrapartida, o desempenho desse grupo nas tarefas que requeriam flexibilidade cognitiva (mudança de foco de atenção de um padrão de estímulo para outro) apresentou-se significativamente mais comprometido do que os outros dois grupos, reforçando a noção de disfunção executiva na síndrome do autismo.

Coerência Central

Diferenças no sistema de processamento da informação em crianças com autismo é também a base de outra recente teoria em autismo (Frith, 1989). A falta da tendência natural em juntar partes de informações para formar um ‘todo’ provido de significado (coerência central) é uma das características mais marcantes no autismo. O interessante dessa teoria é que busca explicar não somente os deficits mas também as habilidades as quais podem estar não somente preservadas mas inclusive mostrarem-se superiores em indivíduos com autismo, estas últimas recebendo menor atenção na literatura.

A tendência em ver partes, ao invés de uma figura inteira, e em preferir uma seqüência randômica, ao invés de uma provida de significado (contexto), pode explicar a performance superior de crianças com autismo: a) nas escalas de Weshler que envolvem reunião e classificação de imagens por séries, em especial no subteste de Cubos (Happé, 1994); b) nas tarefas de localização de figuras ocultas (Shah & Frith, 1993) e c) nas tarefas de memorização de uma série de palavras sem-sentido ao invés daquelas com significado, comparadas aos grupos de controle (Hermelin & O’Connor, 1970). Evidentemente, há semelhanças entre essa teoria e a de disfunção executiva. Porém, a teoria da coerência central prediz comprometimento somente naquelas funções executivas que estão associadas à integração de um estímulo dentro de um contexto.

Conclusão

As contribuições e limitações das abordagens aqui apresentadas merecem destaque, neste ponto de discussão, iniciando-se pela psicanalítica. Os avanços nos estudos sobre as capacidades sociais do bebê contribuíram para expansões e reformulações das teorias evolutivas psicanalíticas. A noção de um recém-nascido passivo e pouco receptivo às experiências do ambiente foi substituída por fartas evidências sobre a percepção alerta e busca ativa do bebê por outro ser humano (Messer, 1994), conduzindo a sérios questionamentos sobre a existência de uma fase ‘autística normal’ (Mahler, 1975) ou esquizo-paranóide (Klein, 1932/1989), posições essas que, segundo Maratos (1996) e Alvarez (1992) estão sendo revistas. Por outro lado, o estudo na área do autismo também representa uma grande contribuição à psicologia do desenvolvimento ao lançar luzes sobre o papel da interação dos processos constitucionais e ambientais no desenvolvimento humano (as reflexões e reformulações aplicam-se também às teorias piagetianas do desenvolvimento social, pois alertam para uma competência social do bebê mais precoce do que aquela postulada por Piaget). Por fim, embora críticas sejam feitas às interpretações psicanalíticas quanto à gênese do autismo e a alguns aspectos do tratamento (ver Alvarez, 1992 e Maratos, 1996) e as observações realizadas pelos seus proponentes têm sido confirmadas em estudos contemporâneos e muito contribuíram para a disseminação do conhecimento sobre as características clínicas dessa síndrome.

Quanto às teorias afetivas, suas limitações repousam evidentemente no estabelecimento de prioridades causais na determinação do autismo. Críticas têm sido feitas ao argumento de que os deficits sociais decorreriam de problemas no sistema afetivo cujas bases seriam inatas, pois seriam pré-existentes à capacidade de meta-representar. A evidência para esse argumento estaria nas dificuldades da criança autista quanto à expressão de comportamentos sócio-comunicativos não-verbais e afetivos, ainda no primeiro ano de vida da criança (ver Bosa, 1998). Contudo, segundo os teóricos da mente, tais habilidades já poderiam ser consideradas indicadores precoces da capacidade de desenvolver uma teoria da mente (Baron-Cohen, 1995). Dessa forma, disfunções na área da comunicação e do reconhecimento e expressão da emoção poderiam ser explicados tanto por fatores afetivos quanto cognitivos. De qualquer forma, um dos grandes méritos das teorias afetivas foi o de chamarem a atenção para a falha dos teóricos da mente em considerar o componente afetivo na representação de estados mentais.

Sobre a teoria da mente aplicada ao estudo do autismo, Bailey, Philips e Rutter (1996) ressaltam que as pesquisas nessa área possibilitaram um grande impulso no conhecimento dos mecanismos cognitivos envolvidos nessa síndrome, cujos resultados têm se mostrado suficientemente robustos nas replicações. Entretanto, chamam eles a atenção para os pontos nevrálgicos que ainda persistem, tais como: a) explicações a respeito da pequena percentagem de crianças autistas que ‘passam’ nos testes da teoria da mente, mas que a despeito disto apresentam deficits sociais na sua vida cotidiana; b) a relação entre teoria da mente e comportamentos estereotipados ou ainda, ‘ilhas’ de habilidades.

A respeito do papel do deficit na função executiva na origem do autismo, o estabelecimento de uma relação causal é controverso, sendo que uma relação recíproca entre ambos não pode ser descartada (McEvoy e cols., 1993). Além disso, contra a corroboração da noção de que o deficit na função executiva seria primário no autismo, estão os estudos demonstrando que problemas nessa área não são específicos dessa patologia, sendo também encontrados em outros transtornos, tais como nos de Deficit de Atenção e Hiperatividade - TDAH (Chelune, Ferguson, Koon & Dickey, 1986).

Finalmente, sobre a teoria da coerência central, pode-se dizer que esta encontra-se num estágio muito inicial e que diversas questões precisam ser examinadas, tais como: a) a sobreposição com a teoria da função executiva, considerando-se que ambas apontam a existência de um deficit na capacidade de integrar partes em um todo, como central à síndrome (Kelly e cols., 1996); e b) a investigação de crianças situadas em diferentes pontos do espectro autista e daquelas com outras patologias, através de estudos comparativos. Além do mais, essa teoria não explica, de forma direta, como o deficit de coerência central se relaciona com as dificuldades no comportamento social. Por outro lado, as teorias de processamento da informação têm um papel fundamental em termos de intervenção, uma vez que o conhecimento a respeito das formas particulares com que crianças com autismo apreendem o mundo circundante tem revertido em estratégias de ação, por exemplo, na prática psicopedagógica com essas crianças.


Em suma, tem havido uma expansão considerável de pesquisas sobre os aspectos sociais e cognitivos na área do autismo. Entretanto, uma interpretação única e final do conhecimento acumulado ao longo dos anos permanece impossível por várias razões. Primeiro, os diferentes achados ainda não cobrem toda a extensão de diferenças individuais ao longo do espectro, embora tenham contribuído para desmistificar, em parte, a idéia caricaturizada de um indivíduo com autismo. São necessários mais estudos que investiguem não somente as deficiências mas também as competências sociais destes indivíduos. Pensa-se que o conhecimento acerca dessas diferenças possa ter implicações para a identificação precoce da síndrome, visto que as crianças autistas mais ‘competentes’ são as que mais demoram a receber tal diagnóstico. Segundo, a questão do diagnóstico diferencial ainda apresenta-se controverso. Finalmente, esse campo tem sido dominado pela polêmica em torno de prioridades causais (afetivas, cognitivas, biológicas) na determinação da síndrome. Ainda que a interação desses diferentes processos tenha sido proposta e reconhecida em termos teóricos, a sua operacionalização ainda constitui um grande desafio aos futuros estudos. Esforços devem ser concentrados na desafiadora tarefa de integrar-se os achados das diferentes áreas a fim de compreender-se os mecanismos através dos quais diferentes facetas do comportamento combinam-se para formar o intrigante perfil que caracteriza o autismo.

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Recebido em 21.09.99Revisado em 13.10.99Aceito em 04.11.99


Sobre as autoras:
Cleonice Bosa é Psicóloga, especialista em Psicopedagogia Terapêutica, Mestre e, Pscologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e PhD em Pscologia pelo Instituto de Psquiatria, Universidade de Londres, Professora do PPG em Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Maria Callias é BA (Hons.), MA. MSC, PHd, em Psicologia Clínica, Professora e Psicóloga Clínica do Instituto de Psquiatria, University of London e Moudsley Hospital (até 1995). Atualmente, Chefe do Departamento de Psicologia Clínica da Infância e da Adolescência do St. George's Hospital, Londres, Inglaterra.


1Endereço para correspodência: PPG Psicologia do Desenvolvimento, Instituto de Psicologia/UFRGS, Rua Ramiro Barcelos 2600, 90035-003 Porto Alegre RS. Fone: (51) 3309507; Fax (51) 3304797. E-mail: cleobosa@conex.com.br 2 Este artigo é parte integrante da tese de doutorado da primeira autora sob a orientação da segunda, com o apoio do CNPq.

© 2009 PRCRua Ramiro Barcelos, 2600 - sala 11090035-003 Porto Alegre RS - BrazilTel.: +55 51 3308-5691

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